Capítulo I - A garota por detrás das chamas

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


Capítulo I
A garota por detrás da chamas


Nem mesmo a menor das nuvens ousava macular o céu azulado naquela manhã de verão no pequeno vilarejo bruxo de Montgomery; fato que os olhinhos azuis da pequena Samantha observaram com total descaso, logo ao levantar da cama e abrir as janelas do seu quarto.

Os pequenos jardins dos casebres vizinhos floresciam lentamente, recuperando-se do outono devastador que havia desfolhado as árvores, tirado-lhes os frutos e destruído-lhes as flores. Por outra perspectiva, no entanto, as folhas velhas e secas davam lugar à uma copa noviça de uma tonalidade verde peculiar, mais clara e mais reluzente do que as já desgastadas pelo tempo. Os frutos derrubados pela ação dos ventos enriqueciam o solo e das suas sementes cresciam pequenos brotos de plantas das mais variadas cores, tamanhos e aromas.

O clima era extremamente seco e permaneceria assim por uns bons meses, até que os ventos gelados viessem do norte à altura do final do ano e trouxesse das não tão distantes montanhas nuvens pesadas de chuvas que não durariam nem um terço do inverno.

Montgomery era pouco mais do que uma pequena vila auto-suficiente numa extensa planície situada no extremo norte da Europa. Contava com poucas dúzias de pequenas casas, sítios e famílias tradicionais, chatas e tediosas como a filha única do casal Flyweather soubera desde que a família havia se mudado para ali.

Tanto ou mais tedioso do que aqueles bruxos que sabiam usar a sua magia apenas para irrigar o solo e fazer pequenas tarefas domésticas, eram os dias de Sam. Ainda que a residência da família fosse muito maior do que qualquer outra num raio de muitas e muitas milhas – Era uma construção de madeira, como quase todas por ali, que contava com três andares de cômodos muito amplos, sendo eles: meia dúzia de quartos, uma cozinha, uma enorme sala de jantar, uma vasta biblioteca, uma sala de estudos, uma sala de música e uma sala de estar, além do jardim sempre bem cuidado e convidativo que atiçava a inveja das crianças vizinhas – a pequena garota dos cabelos de ouro dormia e levantava todos os dias com o mesmo marasmo estampado em suas faces angelicais.

Não que ela precisasse demonstrar isso à todo mundo. Para a professora particular que vinha lhe ensinar música erudita, canto e disciplinas escolares como História da Magia ou Feitiços, ela era uma aluna exemplar, dedicada e uma garotinha extremamente educada e agradável. Para as outras crianças, Samantha era a menina estranha, calada e riquinha. Os amigos dos pais, bruxos influentes ou medibruxos famosos, que a conheciam nos grandiosos jantares que o Sr; e a Sra. Flyweather ofereciam, viam-na como uma pequena princesa ou uma bonequinha perfeitinha.

“Posso tocar Bach ou Chopin, se isso agradar.” – Dizia a menina para os convidados dos pais, oferecendo-lhes sempre o seu melhor sorriso; aquele que fazia seus olhinhos azuis adquirirem um brilho único, ressaltando-lhe o toque angelical da face – “Ou recitar algum poema, quem sabe. Camões há de nos fazer bem. A arte trouxa é de certo deveras apreciável” – E assim encantava a todos com seus modos polidos, sua inteligência ou seu vocabulário incomum para uma garotinha de 10 anos, além, é claro, de seu inegável talento.

Essas convenções grandiosas, jantares para cinqüenta, sessenta bruxos, eram as poucas oportunidades que a garota dispunha para ver os pais. Aconteciam 3 ou 4 vezes por ano, datas em que todos os empregados da casa trabalhavam um dia e uma noite para deixar tudo esplêndido para o julgamento e agrado dos nomes mais notáveis da comunidade bruxa inglesa. À exceção dessas festas, Samantha era deixada em casa aos cuidados dos criados, da professora e do seu próprio julgamento enquanto os pais viajavam incessantemente por diversos países a fim de finalmente concluir o grandioso estudo ao qual ambos se dedicavam exclusivamente nos últimos nove anos.

Embora não fosse uma atitude muito comum para uma criança, ela se acostumara com os momentos sozinha. Apesar do tédio inevitável, trancava-se por longas horas na biblioteca da família, oferecendo particular atenção para os livros médicos dos pais. Quantas teorias interessantíssimas não haviam sido sua companhia durante tardes a fio?

Naquela manhã, porém, nem mesmo a vasta biblioteca lhe parecia atraente: o tédio parecia correr-lhe pelas veias, alcançar-lhe as entranhas e envolve-la por completo. Talvez se soubesse o que estaria por vir, teria aproveitado de maneira inteiramente diferente o intervalo de tempo entre o nascer do sol e a madrugada gélida.Como temia, no entanto, a manhã se arrastou lenta e vagarosamente, mas a sucessão de fatos que ocorreram após o entardecer foram rápidos demais e mudariam para sempre o curso da sua vida.

Não havia nenhum jantar marcado. Não era seu aniversário, tampouco alguma data importante. Não receberiam visitas. Por que, então, os pais haviam decidido passar um dia em casa quando estavam há mais de seis meses no Egito? Se acreditasse em destino, a pequena Samantha teria respondido que fora simplesmente porque tinha de ser daquela maneira, mas mesmo tão pequena ela era demasiado senhora de si e julgava-se imponente demais para dar credibilidade a coisas tão fúteis e imprecisas.
A inesperada chegada dos pais levou a pequena a comportara-se como era esperado de uma verdadeira dama. Cumprimentara-lhes à certa distância civiliazada, mostrara-lhes o que aprendera nos últimos meses, jantaram juntos e tocara piano e violino na companhia do senhor e senhora Flyweather por quase uma hora antes de ir se deitar.

E então tudo aconteceu.

Rápido demais.

A madrugada estava muito fria, o que não combinava com o tempo ameno tão comum naquela época do ano. Não ventava, mas mesmo assim seu pequeno corpinho tremia por completo, apesar de estar enrolada no manto que aquele homem estranho lhe dera antes de pegá-la no colo.

Atrás de si, a mansão da família era consumida rapidamente pela maior labareda que já tinha visto. Podia ouvir crepitar simultaneamente as milhares de tábuas de madeira que compunham a casa, sentir o cheiro da fumaça dos móveis sendo incinerados e até mesmo as cinzas que pousariam no solo e seriam a única coisa remanescente da sua antiga vida.

Além das chamas, quase podia enxergar os pais presos em um sono profundo, tomando consciência quando fosse tarde demais: via claramente as suas feições de desespero ante a morte inevitável. Via o fogo, cruel e insaciável, se aproximando cada vez mais, inexoravelmente, até que ambos proferissem um grito diferente de qualquer som que já tinha lhe escapado pelos lábios anteriormente. Um som único e incomparável que seria o prelúdio do fim: a tradução do medo que tomava cada pedaço de seus corpos. Então, o fogo também lhes consumiria e havia de transformá-los em cinzas exatamente iguais ao que antes fora madeira, móveis e plantas.



*


No dormitório feminino da casa Drakon, da escola de Magia e Bruxaria de Kolguev, Samantha Flyweather abriu seus olhos.

O suor lhe escorria pela testa e contornava-lhe a face marmórea, tão pálida como se a vida tivesse abandonado o corpo, fazendo com que os fios ondulados e dourados grudassem em seu rosto. Seu coração palpitava descontroladamente e sua respiração arfante estava descompassada. Acabara de rever em sonhos a morte dos pais. Tão clara e vividamente como se ela estivesse lá outra vez.

De súbito, um sorriso involuntário lhe escapou do mais íntimo da alma – se realmente possuísse uma – tão cruel que por si só roubava qualquer reminiscência de humanidade que pudesse haver em suas feições, mas desapareceu tão logo que surgiu.

Baixo e tímido, chegou aos seus ouvidos um som que ecoara ao longe. Por um instante tão breve quanto uma fração de segundo, a loira pensou ter se enganado, afinal ainda estava sob efeito do passado que lhe viera em sonho, mas a razão voltou depressa a si. Jamais seria capaz de confundir aquele sibilar que não remetia a nada que fosse vivo; um som não-natural que parecia chamar seu nome claramente.

1 se manifestaram:

Miih disse...

MEU DEUS! Até aqui eu AMEI! Quero mais! Me informe imediatamente de mais! *-*